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Tesouro Genético

Você já imaginou se fosse possível juntar, numa única raça, várias qualidades diferentes, como rusticidade, produtividade, resistência a doenças. Isso pode parecer um sonho. Mas os cientistas já vislumbram um futuro assim, de olho nos avanços da genética.

Por isso, é tão importante conservar antigas raças domésticas, aqueles porcos, bois, cavalos trazidos há séculos para o Brasil. E que hoje quase desapareceram de nossos campos.

Os repórteres Camila Marconato e Francisco Maffezoli Júnior visitaram uma fazenda que abriga várias dessas raças.

Você conhece o boi chifrudo? E o animal sem chifre? E um porco mais cheio de banha, com focinho cumprido? A cabra repartida. Os cavalos baixos, quase selvagens? Pois saiba que esses animais, de raças meio esquecidas, já contribuíram muito para o desenvolvimento do Brasil. Há quem garanta que eles ainda têm muito a oferecer.

A equipe de reportagem foi à Fazenda Sucupira, em Brasília, Distrito Federal. É um campo experimental da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, também conhecida como Cenargen.

A parede da sede exibe a filosofia do trabalho: "O lixo de hoje será a mina do futuro". No lugar, funciona o Centro de Conservação de Recursos Genéticos Animal da Embrapa, com raças de criação que quase desapareceram. Arthur Mariante, agrônomo e zootecnista, coordena o programa, que começou em 1983.

“Essa é a raça mocho nacional. E é a raça que fez com que o Cenargen incluísse os recursos genéticos animais em seu programa de pesquisa de conservação, que até então incluía só plantas. O nosso colega, numa visita a uma propriedade no interior de São Paulo, onde ele foi coletar forrageiras, foi informado pelo proprietário que ele possuía nesta própria fazenda cerca de oito fêmeas e três machos da raça mocho nacional, que é a única dentre as raças antigas que não apresenta chifres. E ele acreditava que estes eram os últimos animais que existiam no país. Nosso colega, preocupado, voltou e convenceu o chefe à época, que era o doutor Dalmo Jacometi, a incluir a conservação animal. Então, graças a essa raça, hoje nós temos um programa que tem servido de exemplo para outros países pela rede de conservação animal que a gente conseguiu montar”, contou Mariante.

O mocho nacional é uma raça de origem ibérica, usada principalmente em serviços de tração. A ideia central do programa é conservar raças como essa, que foram perdendo espaço para outras mais produtivas. A maioria delas chegou ao país há séculos, com os colonizadores europeus.

"Eles não lavram, nem criam. Nem há boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra alimária que costumada seja ao viver dos homens".

A constatação de Pero Vaz de Caminha nas cartas que registraram a descoberta do Brasil em 1500 é de um território sem criação. Os índios viviam principalmente da caça, da pesca e da mandioca.

Logo após o descobrimento, os primeiros lotes de animais para criação desembarcaram pelo Brasil, trazidos pelos portugueses. Bois, cavalos, porcos, ovelhas e cabras começaram a habitar os campos da nova terra.

Ao longo dos séculos, a natureza tratou de selecionar esses animais, adaptando sua genética aos variados ambientes do que é hoje o Brasil. A essas novas raças formadas no país deu-se o nome de "domésticas ou naturalizadas".

Acontece que no século XX raças comerciais, mais produtivas, acabaram substituindo as domésticas. Algumas até desapareceram. Outras, quase. É aí que a história sucupira começa.

O gado crioulo lageano é um bom exemplo do que estamos falando. Pomposo, chifrudo e de pelagem malhada, foi formado no sul do Brasil, principalmente na região de Lages, no planalto catarinense. Tem tripla aptidão: serve para carne, leite e tração. Mas hoje o que interessa mesmo é outra característica: a adaptação ao frio intenso.

Os genes do lageano podem, no futuro, ajudar, por exemplo, a melhorar rebanhos de nelore no Centro-Oeste, região que vê a temperatura despencar em alguns poucos dias do ano.

Esse é um dos grandes interesses desse trabalho: ao conservar as raças domésticas, conserva-se também certas características genéticas que ainda podem ser úteis para o melhoramento das raças comerciais de hoje, como a resistência ao frio, no gado lageano, ou, no caso de outra raça, a rusticidade e a resistência à secura do semi-árido.

“Essa é a raça curraleira, também chamada de pé duro. É a menor das nossas raças naturalizadas, mas tem uma razão. Principalmente na região semi-árida, que é o Nordeste, não existe muita disponibilidade de forrageiras. Então, os animais são pequenos. Embora pequenos, eles são produtivos. Um fêmea produz, em geral, um bezerro ao ano”, explicou Mariante.

Ao todo, trinta raças participam do programa de conservação. São de sete espécies diferentes: bois, cavalos, jumentos, búfalos, porcos, ovelhas e cabras. Algumas raças participam porque estão ameaçadas de desaparecer. É o caso do boi junqueira, que não tem nem cem exemplares em seu único rebanho conhecido.

Outras precisam ser conservadas para evitar a miscigenação. As principais raças de caprino no Nordeste, por exemplo, estão muito sujeitas a perder suas características por causa de sucessivos cruzamentos com outras raças.

Veja também o exemplo das cinco raças de porcos domésticos da Fazenda Sucupira: piau, moura, nilo, monteiro e o casco de burro. “Todas elas são do tipo banha, que era a gordura que se usava há quatro ou cinco décadas atrás na alimentação humana. Só que mudou. Então, o porco tipo banha perdeu a sua função”, disse Mariante.

Segundo Mariante, as raças tipo banha podem ser criadas soltas, ao contrário das raças tipo carne. E podem até formar menos gordura em sua carne, dependendo da dieta que seguirem. Essas características podem contribuir para futuros melhoramentos.

“O mercado comum europeu está cada vez mais preocupado com o bem-estar animal. Então, vai chegar o momento em que a Europa vai dizer não importarão mais animais criados de forma muito confinada. Então, eles seriam uma forma de nós continuarmos tendo nosso mercado europeu levado em consideração o bem-estar animal”, esclareceu Mariante.

Os pesquisadores não conseguem manter na fazenda em Brasília exemplares vivos de todas as raças que fazem parte do programa de conservação. Muitas dependem de condições específicas de clima e ambiente. Por isso, todo mundo concorda que o sucesso desse trabalho depende dos chamados núcleos de conservação, uma rede pesquisa integrada que hoje está espalhada em todas as regiões do país.

Os 21 núcleos de conservação funcionam dentro das unidades da Embrapa, em algumas universidades e até em fazendas privadas.

A Fazenda Sucupira responde principalmente pelo trabalho de conservação do material genético. No dia de coleta do sangue e do sêmen do crioulo lageano, escolhido como um bom representante da raça, o sêmen é coletado na Sucupira. Depois de algumas tentativas de monta, o resultado. O sêmen do lageano segue para o laboratório. No microscópio, a análise da movimentação e da força dos espermatozóides.

Todo sêmen congelado no laboratório fica armazenado num tanque. É o famoso banco de germoplasma. O trabalho de quase 30 anos está no tanque. A fumaceira do nitrogênio atrapalha a visão. Um aspirador de pó ajuda na limpeza.

O banco de germoplasma da Embrapa guarda 62 mil doses de sêmen e 490 embriões de raças variadas.

A equipe de reportagem deixou a Fazenda Sucupira para conhecer o laboratório de genética animal da Embrapa, também em Brasília, para onde o sangue do lageano foi levado.

A amostra de sangue passa por uma série de processos para extração do DNA, uma molécula que existe dentro das células e que contém todas as informações genéticas de um ser vivo.

Primeiro, o sangue vai para uma centrífuga, que separa as chamadas células brancas das células vermelhas e do plasma. Como só as brancas interessam, a amostra é centrifugada pelo menos mais quatro vezes. Reagentes químicos degradam todas as outras partes das células, mantendo intacto somente o DNA.

O banco de DNA da Embrapa é um freezer grande, que mantém as amostras a menos 80 graus. Às vezes, o processo de caracterização genética, feito com equipamentos sofisticados, revela surpresas. A última foi a descoberta de uma raça nova, ainda sem reconhecimento oficial.

“Veio um material, amostras do Maranhão, um cavalo que eles falavam baixadeiro. Só que fenotipicamente os animais eram muito parecidos com os cavalos marajoaras da região próxima. Então, nós coletamos várias amostras desses animais, extraímos o DNA, fizemos todo estudo de caracterização e vimos que, em média, esses animais realmente eles eram diferenciados dos animais da raça marajoara. Então, hoje isso é um argumento muito forte pra gente, de que realmente pode se tratar de um novo grupo genético de cavalos no Brasil, que seria o baixadeiro”, disse Mariante.

O cavalo baixadeiro ainda nem tem um núcleo de conservação bem formado. Só é possível conhecê-lo nos pastos alagados do Maranhão, onde costuma viver.

Fonte: Globo Rural

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