Deslocamento de Abomaso: uma simples enfermidade ou um indicador de erro de manejo?

Entretanto, em conjunto com as mudanças no perfil de nossas propriedades, ocorreu também uma alteração nos problemas por elas enfrentados. Se, com a utilização de melhores práticas, é possível ter um melhor monitoramento e controle das doenças infecciosas, por outro lado, surgiram novas doenças, principalmente relacionadas às mudanças metabólicas sofridas pelas vacas altas produtoras durante os processos fisiológicos que envolvem a lactação. Várias doenças podem ser relacionadas a isso, entre elas, a hipocalcemia, a retenção de placenta, a infecção uterina, o edema de úbere, a cetose e o deslocamento de abomaso.

Juntamente com a mudança no perfil dos animais e das doenças, é necessário buscar um novo comportamento e compreensão do sistema de produção e dos problemas nele existentes. As doenças, em um rebanho leiteiro, devem ser observadas não só como um simples problema metabólico ou infeccioso, mas como um indicador de um problema de manejo. Na maioria das vezes, leva a prejuízos muito maiores do que o simples custo de tratamento.

O deslocamento de abomaso é uma enfermidade cada vez mais comum em nossos rebanhos leiteiros e que se encaixa bem nesse novo perfil de problemas da bovinocultura moderna. Um animal com deslocamento de abomaso à esquerda, normalmente, apresenta apetite diminuído e seletivo, desidratação moderada a severa e uma grande queda na produção de leite. Essa enfermidade, usualmente, não está relacionada à morte rápida em animais de leite. Normalmente, é facilmente diagnosticado e sua correção é cirúrgica, por meio de um procedimento simples e rápido de fixação do abomaso em sua posição anatômica normal. Se o diagnóstico do problema for rápido e a cirurgia bem executada, ocorre um pronto restabelecimento do apetite do animal e, em alguns dias, a produção de leite fica reestabelecida a valores próximos aos considerados normais para o animal. A partir dessas informações, poder-se-ia considerar que o deslocamento de abomaso seria um problema da bovinocultura leiteira moderna, de fácil resolução e que não apresentaria grandes problemas aos produtores. No entanto não é isso que ocorre.

Os deslocamentos de abomaso à esquerda proporcionam perda econômica nos rebanhos leiteiros devido aos custos com o tratamento, queda na produção, aumento dos descartes involuntários e morte. Os custos com o tratamento estão entre R$ 400 a R$ 800 por animal e, mesmo após o tratamento, cerca de 5 a 10% das vacas diagnosticadas com esta doença são descartadas ou morrem. As vacas tratadas, que continuam no rebanho, produzem cerca de 350 Kg de leite a menos nos meses subsequentes ao deslocamento de abomaso, podendo essas perdas ser ainda maiores. Estudos americanos mostram que ocorrem perdas de até 20% dos casos tratados, sendo que estes não conseguem passar de 2000 Kg de leite como produção total na lactação afetada.

Se o deslocamento de abomaso ocorrer apenas uma vez na propriedade, ou como casos esporádicos, realmente, o problema é de fácil solução, a cirúrgica. No entanto a incidência de deslocamento de abomaso tem sido cada vez maior nas propriedades leiteiras no Brasil, acometendo cada vez um número maior de animais, passando a ser um problema extremamente comum. Essa enfermidade, no início da década de 90, era diagnosticada quase exclusivamente em rebanhos de raças europeias, como a Holandesa e Pardo Suíço, mas, nestes últimos anos, passou a ser relativamente comum a incidência em rebanhos com vacas mestiças de alta produção.

Nas propriedades onde é constante o diagnóstico de deslocamento de abomaso, a simples realização da cirurgia não é suficiente para controlar o problema. Nestes casos, outros animais da propriedade estarão propensos a desenvolver a enfermidade, levando a altos custos com procedimentos cirúrgicos, grande queda na produção de leite, nos índices reprodutivos e maior descarte involuntário de animais, diminuindo, assim, a pressão de seleção exercida e os lucros com as vendas de animais aptos a produzir. Nessas propriedades com alta incidência de deslocamento de abomaso, mais importante do que só tratar o problema, é preveni-lo. Para isso, faz-se necessário o entender o seu desenvolvimento e seus fatores predisponentes.

O deslocamento de abomaso é uma doença multifatorial, ou seja, possui uma grande quantidade de fatores predisponentes que levam ao seu desenvolvimento. No entanto não é necessário que todas essas causas ocorram ao mesmo tempo para o aparecimento da enfermidade. O pré-requisito mais importante para seu desenvolvimento é a parada total ou parcial da movimentação do abomaso do animal, com posterior distensão por gases. Portanto, qualquer fator que leve à menor movimentação do trato digestivo do animal pode desencadear um processo de deslocamento do abomaso à esquerda. Várias doenças podem levar à diminuição no consumo e, com isso, menor movimentação do trato digestivo, sendo as mais comuns a acidose ruminal subclínica, a laminite, a hipocalcemia, a mastite, a retenção de placenta, a metrite e a cetose. Um aspecto importante a ser ressaltado em relação aos fatores predisponentes do deslocamento de abomaso é que, mesmo existindo uma série de doenças relacionadas à sua ocorrência, nenhuma bactéria ou vírus é responsável diretamente pelo deslocamento do abomaso.

Com isso, pode se concluir que o deslocamento de abomaso não é uma doença contagiosa e que foi introduzida por um novo animal. O problema é do rebanho e de como ele é conduzido. Outra conclusão importante é que toda vez que há grande incidência de deslocamento de abomaso, há algum problema na ingestão de alimentos, o que mostra um erro no manejo da propriedade. Erro que não leva somente ao desenvolvimento do deslocamento de abomaso, mas conduz, principalmente, a menores produções de leite, mesmo que os animais do rebanho tenham potencial de produção elevado.

Se o deslocamento de abomaso tem tantos fatores predisponentes, como conseguiremos saber e combater as causas no rebanho? Vamos começar por um dado simples, que nos norteará nas decisões a serem tomadas na sua prevenção. A primeira pergunta a se fazer é: quando as vacas estão apresentando deslocamento de abomaso na propriedade? No início, meio ou fim da lactação? Ou será nas vacas secas? Essas perguntas serão facilmente respondidas com a simples observação e anotação dos dados dos animais enfermos.

A grande maioria dos deslocamentos de abomaso ocorre no primeiro mês após o parto, ou seja, no início da lactação (cerca de 85% dos casos nos primeiros 21 dias). A partir dessa informação, podemos concluir que, para prevenir o deslocamento de abomaso, devemos focar nos fatores que irão influenciar o início da lactação, prestando mais atenção no último mês de gestação (vaca seca) e no primeiro mês de lactação. Coincidentemente, todas as doenças listadas como fatores predisponentes também ocorrem neste período. Como o deslocamento de abomaso não está relacionado diretamente a fatores infecciosos, e sim a problemas de ingestão de alimentos, devemos focar em todos os fatores que levam à menor ingestão no período “pré-deslocamento”. Isso significa que, em uma fazenda com grande incidência de deslocamento de abomaso, provavelmente, há erros de manejo no periparto que promoverão o desenvolvimento de várias outras enfermidades e menores produções de leite.

Ao analisar este período, deve-se focar em fatores que predisponham à menor ingestão de alimentos, uma vez que o menor consumo está diretamente ligado à motilidade do trato digestivo, e, consequentemente, do abomaso. A ingestão de alimentos no período periparto por si só já é baixa, sendo um dos grandes desafios da bovinocultura de leite moderna. Apesar de ser difícil impedir a queda da ingestão nesse período, alguns pontos devem ser verificados e corrigidos para que se tenha um melhor desempenho animal, como adaptação à dieta, utilização de dietas completas (TMR), densidade nutricional adequada da dieta, frequência de fornecimento de alimento, quantidade de fibra fisicamente efetiva, escore da condição corporal, separação adequada dos lotes e conforto animal.

Os termos dieta completa, dieta total, ração completa e “total mixed rations” (TMR) referem-se ao fornecimento de volumosos, concentrados, suplementos proteicos, vitaminas, minerais e outros aditivos em uma mistura única. Os ingredientes devem ser misturados o suficiente para prevenir separação e escolha, sendo a dieta fornecida à vontade aos animais. Este manejo contrasta com um manejo alimentar bastante usual nas propriedades brasileiras, que consiste no fornecimento de concentrado durante a ordenha, geralmente, de acordo com os níveis de produção, ficando o volumoso disponível nos cochos durante todo o dia ou parte deste. Entretanto esta prática apresenta algumas limitações importantes, como a rápida ingestão de alimentos ricos em carboidratos prontamente fermentáveis.

A ingestão de alimentos será ainda maior se, além da dieta total, for utilizada a uma maior frequência de arraçoamento dos animais. O aumento na frequência de fornecimento da dieta também evidencia um efeito estabilizador nos parâmetros da ruminais, o que acarreta maior ingestão de alimentos ao longo do dia com seu maior aproveitamento pelo animal.

O balanceamento adequado da dieta também tem um papel fundamental no estímulo de consumo dos animais. Apesar de essa observação ser lógica, nem todas as propriedades trabalham com dietas bem balanceadas. Relações entre concentrado e volumoso inadequadas são comuns nos rebanhos brasileiros. Muitas dessas dietas formuladas não apresentam um balanceamento adequado de fibra fisicamente efetiva e carboidratos não fibrosos, o que acarreta acidose subclínica nos animais, podendo promover o deslocamento de abomaso.

Como consequência dessas práticas errôneas, tem-se, comumente, marcantes flutuações no ambiente ruminal, com diminuição na ingestão de volumosos por várias horas após o fornecimento de concentrado, mesmo quando forragens frescas são oferecidas. Além disso, as mudanças no ambiente ruminal levam ao desenvolvimento de acidose subclínica, uma doença que predispõe ao deslocamento de abomaso.

A determinação da presença de acidose subclínica no rebanho nem sempre é muito fácil de estabelecer, mas este tipo de enfermidade promove uma marcante alteração no leite, a inversão entre as concentrações de gordura e proteína. Portanto, se o rebanho apresentar grande quantidade de deslocamentos de abomaso e a concentração de gordura no leite estiver menor do que a de proteína, estamos na presença de acidose subclínica, mostrando que há problemas na dieta do periparto.

Outro ponto importante no balanceamento das dietas é a quantidade de macro e microminerais, bem como vitaminas, que, muitas vezes, são negligenciados pelos técnicos, sendo que as dietas expõem valores inferiores às necessidades dos animais. Em levantamento realizado na região central de Minas Gerais, cerca de 90% das propriedades analisadas não apresentavam balanceamento correto de selênio e vitamina E, nutrientes essenciais para o bom funcionamento do sistema imune.

Essas propriedades também não se preocupavam com o balanço cátion-aniônico da dieta, uma ação importante na prevenção da retenção de placenta e hipocalcemia (síndrome da vaca deitada), fatores predisponentes do deslocamento de abomaso. Rebanhos que registram alta incidência de deslocamento de abomaso juntamente com um número elevado de casos de retenção de placenta e hipocalcemia, podem apresentar falhas no manejo alimentar das vacas no pré-parto. Nesse caso, a correção não seria relacionada ao uso de concentrados, mais, sim, em uma mistura mineral adequada para suprir as necessidades do animal em cada fase de seu ciclo produtivo.

Outro ponto, de mais fácil observação, que desempenha um papel importante na ingestão de alimentos em vacas no início de lactação, é o escore de condição corporal. Vacas muito gordas (escore corporal >4, em uma escala de 1 a 5) possuem menor apetite quando comparado a vacas com condição corporal moderada (escore corporal entre 3 e 4, em uma escala de 1 a 5). Essa menor ingestão ocorre mesmo que todos os fatores relatados anteriormente estejam ajustados. Vacas, normalmente, chegam ao momento do parto com escore elevado por dois motivos principais: problemas reprodutivos, que proporcionaram um período seco muito longo ou dietas muito ricas em energia no final da lactação. Nesses dois casos, a correção do problema não será realizada no periparto, sendo que a tentativa de emagrecer as vacas nesse período se tornam desastrosas, aumentando ainda mais a incidência de deslocamento de abomaso no pós-parto. As medidas de controle devem ser tomadas por meio de um monitoramento simples de escore de condição corporal e ajuste da dieta.

Devido a todos os fatores apresentados, a elevada incidência de deslocamento de abomaso em uma propriedade leiteira não significa apenas um animal doente, mas, sim, uma fazenda doente, que necessita de maiores atenções na dieta e no manejo nutricional.

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